Jó, o crucificado



Jó inaugurou o debate sobre o sofrimento, e o fez a partir de sua própria história. As questões vivenciadas por esse personagem são resultados de debates até hoje, e a causa do sofrimento ainda parece ser particularmente associada à ideia da existência de Deus. Diversas literaturas tanto antigas como modernas apontam para a incompatibilidade de um Deus bom permitir o sofrimento.

A questão é que Jó inicia o pensamento pelo caminho oposto. Quem pergunta sobre o sofrimento é Deus, e o faz pelo caminho de atestar a verdadeira humanidade. Deus perguntaria: é o possível crer no homem se ele passar pelo sofrimento? A dúvida metódica e retórica de Deus imporiam ao homem a resposta de sua humanidade. Em outras palavras, ser humano é permanecer sofredor e, negar essa instância negaria portanto a própria humanidade.

O texto segue a lógica de Deus lendo a realidade do homem e percebendo com prazer a atitude de Jó em meio às perdas materiais e afetivas e todo o sofrimento que lhe causou, respondendo com uma humanidade profunda:

"O Senhor deu, e o Senhor o tirou"

A teologia de Jó estava portanto alinhada com a teologia divina. O sofrimento tem de ser respondido no viés da existência. Ter não é ser, e muito menos tem haver com a vontade humana, o ter é uma virtude concebida único e exclusivamente por Deus. Enquanto a modernidade declara aos seu ouvintes, “eu tenho, eu existo”. Jó diz: não tenho e continuo existindo!

O primeiro conflito estava resolvido, o homem pode dar conta de seu sofrimento e pode conviver com ele. Jó tinha respondido à retórica divina, tinha sido justificado pelo seu desapego! Até que outra pergunta de Deus começa a inflamar de novo. Agora o motivo era sensorial.



O sofrimento afeta os órgãos do sentido, aqueles responsáveis por colher as informações do mundo, que afetam a percepção, e por isso afetam a vontade. Novamente o humano Jó responde, dessa vez contraria o penso, logo existo. Aquilo que era aferido pelos sentidos e processados pelos pensamentos não poderiam dar contar do que é o sofrimento. A vida não é uma coleção de sensações reveladas, há uma dimensão humana que está acima de tudo isso. No espírito o ser humano dar conta de tudo que vai além do pensamento.

De novo vemos o alinhamento entre teologias. A dúvida didática de Deus é resolvida, a humanidade pode entender o sofrimento, pode tocá-lo e pode dar um sentido para ele. Pensar não é existir. Até mesmo porque o pensamento só nos diz do bem e do mal. A isto Jó diz:


“Receberemos de Deus o bem, e não o mal?”

O dualismo é vencido, a concepção de bem e mal devolvidas a Deus, e Jó permanece provando-se humano demasiadamente humano.

A história tem seu revés ao transferir o debate do conselho divino para o humano. Agora alguns amigos de Jó, pretendem manter a a resposta do sofrimento no patamar divino, e tentam o patriarca a se entregar à lógica desumana. Ao colocarem a responsabilidade (ação frente a) pelo mal em Deus e não à sua causa, caem no abismo destinado aos ignorantes do sofrimento humano.

Cada amigo de Jó parece conter em suas teológicas traços do que mais tarde seria bastante difundido no meio teológico moderno. Ideias como: Prosperidade versus sofrimento, Deus soberano versus sofrimento e pecado x sofrimento, formam a coxa de retalhos da ortodoxia e heterodoxia moderna.

Apenas um de seus amigos lhe apresenta e devolve ao debate a importância do lugar do sofrimento. Um de seus amigos diz que Deus não é responsável ( ação frente a) Sua responsabilidade está em prover a existência. Com isso entendemos que nossa compreensão da responsabilidade humana frente ao sofrimento nos possibilitará enxergar a responsabilidade divina frente a existência. 


A presença do redentor, figura emblemática de salvação. Nos leva a considerar que a encarnação de Deus reservaria resposta final ao sofrimento humano. Agora tudo faz sentido. Jó ao sentir as duras penas do sofrimento estava trazendo Cristo em suas feridas. Sofrer é perceber o Cristo crucificado em nós. Jó foi mais um crucificado, sentiu em suas pele os estigmas do abandono familiar, do circulo de amizades e de Deus. Foi o homem que primeiro imortalizou o sentido de todos os crucificados.

A crucificação da carne nos ensina a trilhar a resposta de Deus. A existência criada por Deus anseia por uma resposta urgente a respeito da vida humana. Jó entendeu o seu sofrimento em uma dimensão quase divina. Ele entendeu que ao sofrer poderia crer na resposta do sofrimento. A sua vida tinha sentido, logo seu sofrimento também.

Não tenho como não terminar esse texto sem mencionar a experiência de Paulo que é minha também.


“Já estou crucificado com Cristo; e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim”

O autor

Oi, meu nome é Rafael Sá. Sou téologo, filósofo e escritor. Neste ambiente a fé se converge com existência, produzindo espiritualidade. Estamos aqui até que chegue a paz do Cristo!

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