Sobre o reino e nossas máscaras.

Por Rafael Sá
 
 
Um aviador ejeta-se de seu avião sobre um deserto no meio de um lugar desconhecido, onde não havia lugar para descansar ou nem ao menos água para beber. Moribundo e entregue à sua própria sorte, o viajante seguia deitado esperando a chegada da morte. De repente se aproximou dali um grupo de peregrinos que andavam desesperados pelas notícias que a pouco tinham recebido.

O rei da cidade mais próxima foi sequestrado por um grupo de assassinos e não havia esperança de que ele estivesse vivo. Ao se chegarem perto do homem estendido sobre o sol escaldante, perceberam que ainda estava vivo e lhe cuidaram das feridas, antes, porém perceberam que o homem que estava ali jogado tinha tamanha semelhança com o seu rei que a surpresa de encontrá-lo os fez pular de alegria. Achamos o rei! Gritavam uns aos outros.

Depois de terem levado aquele homem ainda desacordado até a cidade onde deveria reinar, este deu um salto, e percebeu-se vestido de púrpura e com anéis reais nos dedos, estava coroado e com todos o servindo. Tal lhe foi a surpresa que apenas aguardou calado até entender o que havia acontecido. Ele tinha sido confundido com o verdadeiro rei. A confusão o fez meditar sobre o que deveria fazer. Aproveitar a boa sorte, ou assumir quem realmente era?

O dilema o seguiu de perto noite adentro. Assumir outra identidade era negar o seu ser, quem realmente era, seria então fretar com a maldade. Teria um povo que o reconheceria como outro totalmente diferente do que era. Se o deserto não o matara, a usurpação o faria.

Não assumir aquela posição significaria voltar a ser tudo o que era anteriormente. A verdade é que a vida nunca lhe favoreceu. Ele mesmo se considerava um azarado. Assumir-se era reconhecer seu fracasso, sua vida medíocre e abandonar uma grande oportunidade de desfrutar do poder pelo resto da vida.

Conforme passavam as horas, o dia clareava e o aviador não tinha uma resposta. O seu dilema entre a ética, o prazer e o poder o consumia...

Essa história é baseada em um dos textos de Pascal, embora com uma proposta de investigação diferente. Ousei exatamente repensar o sentido de ser o que somos, ou a negação disso, no paradigma da existência.

O primeiro dilema sobre o qual quero tratar é o da usurpação. A estranha ideia de tomar o lugar de outro é provavelmente o mais grave pecado que cometemos. Nietzsche faz referência ao dizer:

“todo espírito profundo precisa de uma máscara”.

A verdade é que a humanidade ao romper com a sua origem criou, a partir de si mesmo, uma nova imagem de homem totalmente diferente daquela original. Essa imagem é bem evidenciada na inveja. A inveja é um sentimento que gera no seu possuidor uma sensação se usurpação. O sentimento de querer ter o que é do outro. O mais interessante disso é que ninguém quer ser alguém inferior. Somos todos desejosos de parecer com um ser mais elevado. Levando esse encadeamento ao extremo, sabemos que é a falta do homem superior, revelado, que nos aflige.

O homem dentro da teologia é feito à imagem de Deus, mistério esse que só foi revelado com o nascimento do molde humano, a saber, o Cristo. Cristo é o motivo da nossa inveja. É a sua perfeição e a perseguição ao homem perfeito, que nos faz criar a sensação de que deveríamos tomar o seu lugar. Ao cobiçarmos o que é do outro, reafirmamos que não nos bastamos. É a nossa revolta contra o rei que nos causa isso.

O ser do Cristo é nosso ponto de busca, é nosso anseio, pelo simples fato de que Jesus e sua ética estão absolutamente ligados ao Deus criador.

“Meu alimento é fazer a vontade de Deus e CUMPRIR SUAS OBRAS”

Não existe dualidade na visão do Cristo, seu entendimento era o do pai e o entendimento do pai era o seu,

“eu e o Pai somos um”

Então a vida do nosso aviador e seu o dilema se confundem com a nossa. O padrão que se coloca à nossa frente é imensuravelmente majestoso, para que possamos assumi-lo, e se o fizéssemos seríamos infelizes. Pelo peso da realeza, e sua ética exigida, não poderíamos reinar se nos faltasse caráter. Assumir a vida de um ser elevado e perfeito em si mesmo nos geraria um trauma existencial profundo. A verdade é que exatamente desta forma, criamos isso. Optamos por assumir o lugar do rei, desfiguramos as suas atitudes e criamos o livre arbítrio, que é uma forma de dizer que o bem e o mal emanam de nós mesmos. Reinamos no lugar do filho de Deus, traímos a humanidade perfeita.

Nós fingimos porque não temos um rosto certo, este até hoje se encontra desfigurado. A ilusão de que temos dois seres vivendo em nós brota exatamente disso. O Ser criado, profundamente envolvido com a vida e seu projeto grande e imponente, reflete a ideia de que fomos criados pouco menores que os anjos. O ser externo é uma máscara, um engodo. É nele que fabricamos as mentiras, apequenamos o verdadeiro eu, e mutilamos o propósito da criação.

O segundo conflito do aviador diz respeito ao prazer ou poder, porque a sua vida não tinha nenhum sentido até ser posto na cadeira real. Em qualquer aspecto, ele sentia que ali era uma mudança de sorte, o destino tinha lhe proporcionado uma experiência totalmente nova, desfocada daquela que possuía até então, a do azar.

Esse conflito se põe exatamente na mesma égide do dilema da humanidade. Duas escolas famosas de psicologia lidam com a mesma moeda, apenas alterando o seu lado. A vontade de poder é no final das contas a vontade de prazer e vice-versa. Adler e Freud perseguiram os reais problemas humanos, no entanto se esqueceram de que o ser humano só busca esse prazer e esse poder como consolo pela sua vida de frustração. Poder e prazer são sintomas, não o objetivo. E só buscamos os tais pela nossa sensação de que a cadeira real nos pertence.

A semelhança do viajante com o rei é notória e essencial para desvendarmos essa outra face do dilema humano. Este conflito é gerado exatamente porque, como humanos, formos feitos parecidos com Jesus, com a possibilidade inclusive de agir eticamente em direção ao sagrado. Essa aspiração utópica, também se explica pelo trauma da origem o homem separado de seu ideal humano. Porque na vontade de reinar, existe um traço antigo de nosso caráter, que fazia com que toda criação se submetesse ao nosso domínio. A criação tinha um profundo respeito pelo Cristo em nós, pela aparência que tínhamos com o criador.

Éramos seus representantes. Criados para sermos embaixadores do céu na terra. O homem se sentia rei porque no final das contas, era. O espírito do viajante tremia só de pensar na possibilidade de se reestruturar ao momento antigo. Sua face mentirosa desejava usurpação, mas seu espírito a redenção. Autorização!

Nossa consciência sempre nos levará para a ideia de que fomos criados para reinar e, no final das contas, o reino nos pertence também. A similaridade do homem com o rei, não é pura coincidência, é o parentesco reafirmado que lhe indica. A verdade liberta o homem tanto da sua máscara, como lhe dá condições de aceitar o verdadeiro rei. Agora, o ser interior pode ser livre. Tudo que ele quer é:

“Meu alimento é fazer A VONTADE DE DEUS e cumprir Suas obras”

Quando estamos ligados à fonte da nossa vida, nos sentimos alimentados em nosso prazer e temos o poder real, não ilusório e dualista. Em Cristo, que é a imagem, se refaz o novo homem, livre da angustia de reinar no lugar de outro e de desejar o prazer em meio à vida sofrida. Em Cristo somos novas criaturas da realeza do Senhor, e coerdeiros das suas promessas.

Que nossa angustia nos leve para a origem do nosso problema! Que caiam nossas máscaras, para que Cristo reine! Que apareça nosso ser real (no sentido de rei) para que dominemos o mundo e submetamos todo ele à vontade de Deus!

O autor

Oi, meu nome é Rafael Sá. Sou téologo, filósofo e escritor. Neste ambiente a fé se converge com existência, produzindo espiritualidade. Estamos aqui até que chegue a paz do Cristo!

Sobre o tempo, a fé e a eternidade!




A grande questão humana, a existência, passa pelo paradigma lógico do tempo. É a memória que gera a história, um estranho fenômeno que nos faz crer na existência, sem ela não teríamos esperança e não distinguiríamos o nosso lugar no mundo. Por isso não acreditamos que fomos feitos segundo atrás. A memória nos aproxima das pessoas, e ao mesmo tempo nos distingue destas. Quando lembramos, nos tornamos totalmente outro, em relação ao fato histórico, visto por tantos outros, ou seja, somos individualizados frente ao mesmo evento  e coletivizados igualmente nos tornando solidários em relação as vivências. O que quero então dizer com isto, é que a memória por conseguinte a história, nos compacta dentro de uma esfera que podemos chamar existência. Que a um tempo é intimamente pessoal, e no mesmo é coletiva.


Esse paradoxo nos leva a perceber duas formas de aplicação a esse efeito. Somos geralmente otimistas em relação à história universal. Isto se demonstrada na forma como tratamos os temas ligados à solidariedade coletiva. Aos vermos vítimas de tragédias, temos uma força que acredita completamente na salvação pela solidariedade. Nossa perspectiva é heroica quando falamos do passado. Perdoamos todas as nossas atrocidade, em nome dessa grande história.. Entretanto, quando diz respeito as histórias de vida na subjetividade, onde se encontra o desafio existencial, somos deveras trágicos. Contamos nossas histórias como verdadeiras sagas, que brotam da culpa que por sua vez vêm de um medo. Escolhemos os ídolos porque não temos coragem de sermos heróis.


Quem então firmou as colunas do tempo? Quem poderia propor que a volta da terra em torno do sol poderia ser um padrão de medição para os nossos próprios ciclos. Ou será que ciclicidade da história é um engodo que nos faz abandonar a dura realidade que avançamos linearmente. A ilusão nos leva a ano após anos fazer promessas e planos que se repetem infinitamente, como se o próximo ano pudesse nos salvar dos malfeitos do anterior. Inventamos o ciclo da história porque no fundo queríamos nos perdoar de tudo que não fizemos e daquilo que fizemos mal. A história cíclica só interessa aos culpados, aos imbecis e aos falsos heróis, os pescadores de ilusões.



A história é devidamente linear. Nela não são permitidas naturalmente saltos ao passado, não temos o direito de refazer nada. Devemos então conviver com a tristeza, ou seria agonia, de não pudermos dar um jeito naquilo de errado que praticamos. A história não se repete, para que a nossa responsabilidade não fosse adiada para depois.


Temos dois relatos que nos ilustram como se perceber nesse oceano da história, a saber, Abraão e Ulisses. Ambos se aventuraram em uma viajem perigosa, saíram de suas casas e enfrentaram dificuldade inimagináveis. O segundo rendeu-se a história cíclica, sua vontade era retornar ao ponto onde parou historicamente, e perseguir seu ideal de guerreiro. Ulisses viveu o “eterno retorno”. Já o primeiro ao sair de um lugar para outro deu um impulso à sua fé. Perdeu sua identidade étnica, rejeitou o seu destino proposto e sem remorsos partiu em direção à vida, sem saber para onde iria e nem aonde chegaria.


Aqueles que são movidos pela culpa, remorso, ou mesmo pelo seu trabalho se prendem à grande roda da existência, se tornaram cada vez mais enjaulados dentro de si, como gado serão levados e cumprirão apenas o destino natural. As plantas, animais e os elementos, fazem isso. Nada de extraordinário se apresenta sobre eles. A dinâmica culpa/medo os prenderá nas trevas da mesmice humana.



Abraão, o inconformado hebreu, não apenas cumpriu um ideal cíclico, onde por várias vezes se debruçou sobre seu passado tentando se ver perdoado. No entanto ele salta como ninguém jamais saltou. Abandona as convicções de tempo e pula sobre elas, ele nunca mais veria a Caldeia, como Moisés e os hebreus não veriam o Egito. A fé é um salto para dentro da história, é a limpeza da memória, da culpa da insensatez, é o aceitar do desafio da existência. 



Fé é a coragem de ser no tempo, enfrentando, e se abrindo para as possibilidades, sem medo ou culpa. O tempo cíclico ou anti-histórico de fato existe, mas não na ordem humana, pela nossa intenção esse tempo só nos causa dor. O tempo cíclico é a eternidade, o lugar onde a divindade habita e todos os ideais humanos são perfeitos.


A fé resolve a equação e nos ensina a vencer o medo. A fé é a conexão com aquele tempo fora da história, que produz a história , como diz Hegel:

“é a eternidade que faz com que o tempo desperte para a história”


É a eternidade que abre o tempo, é blasfêmia ou irreverência humana a tentativa de eternizar o seu tempo, se conformar, se cauterizar. Deixar para a amanhã a chamada para hoje, nada além do suspiro de uma alma cansada que perdeu a esperança e por consequência não tem nenhuma fé. Abraão sabia exatamente que sua vida estava aberta, como diz Sartre, para o nada. Seu salto para a verdadeira história provocou sua salvação!


Kierkegaard nos diz :

“O tempo intercepta constantemente a eternidade, em que a eternidade penetra constantemente no tempo”

A fé é a forma de ter certeza de um tempo sem culpa ou dor. A fé é a constante da qual deriva a ordem correta da vida. Fé é a forma que o sagrado elegeu para vislumbramos o seu reino, 



“Nós não entenderíamos a eternidade se não tivéssemos contato com ela”
(Plotino)


Temos em nós o código para a eternidade!



Signatum est super nos lumen vultus, tui, Domine!
 [A luz do Senhor está assinalada em nossas frontes (Sl 4.7)]

O autor

Oi, meu nome é Rafael Sá. Sou téologo, filósofo e escritor. Neste ambiente a fé se converge com existência, produzindo espiritualidade. Estamos aqui até que chegue a paz do Cristo!