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Não façam de meu nome uma religião



“Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”


[Êxodo 20:7]


Uma sociedade estava se formando em volta de um deserto, antigos escravos estavam agora desfrutando da liberdade como nunca a viram, no caminho eles desacostumavam das antigas práticas de manipulação de seus senhores, uma sociedade onde a política era dirigida pela mesma pessoa que se autoproclamava deus.

É nesse ambiente que um legislador surge, acostumado a ser um representante daquele antigo sistema, ele sai em direção a uma caminhada espiritual em lugares inóspitos, procurando fugir daquele “deus” que o mataria. Moisés era o seu nome, ele encontrou no meio do deserto o Deus da graça e passou a conhecer a graça de Deus, foi nesse momento que ele se objetivou a levar todo aquele povo ao período de salvação que ele mesmo desfrutou. Ele tinha se livrado dos deuses do Egito, o povo não.

Passada a caminhada logo surge uma forma de governo completamente diferente, aquele povo teria passado por diversas situações e por não terem se encontrado presencialmente com Deus não o reconheciam, apenas o imaginavam em figuras místicas. Do alto de trovões ou fumaça, instituiriam cultos antigos ao novo “deus” e não entenderam o seu propósito salvador.

O legislador surge com diversas normas que deveriam aponta para o caráter de Deus, elas não eram precisamente mandamentos, tratava-se “palavras”, de um discurso sobre Deus, uma pregação do evangelho, transbordante de aplicativos em Jesus. A lei era uma maravilha maldita, pois se a um tempo falava sobre Jesus, a outro condenava todos os que não o conheciam, era lastimável.

Mas há algo de especial nesse texto em específico. A expressão que é diversamente defendida com evitar um pronunciamento do nome de Deus, não pode ser vista desta forma, não são as repetições que infligem a regra também, muito menos a escrita. O mandamento é quebrado quando fazemos uma religião em torno de Deus, eu proporia uma paráfrase: “Não façam de meu nome uma religião”. Jesus, e seu caráter santo, não permitiriam tamanha atrocidade. Ele não nos chamou para sermos cristãos, ou judeus, seu chamado é para a humanidade.

A religião é que usurpa o nome de Deus, a política, sua filha mais nova é cria do relacionamento promíscuo entre fé e prisão da alma, tal qual o antigo Faraó. Temos um povo cansado, triste e oprimido, análogo aos judeus do Egito. Temos destruído o nome de Jesus, o nome de Deus, quando não publicamos uma fé genuína, que fale dele em nossas vidas, quando inventamos que estamos falando em seu nome, e nossa hermenêutica não é pautada no amor.

Sobre o reino e nossas máscaras.

Por Rafael Sá
 
 
Um aviador ejeta-se de seu avião sobre um deserto no meio de um lugar desconhecido, onde não havia lugar para descansar ou nem ao menos água para beber. Moribundo e entregue à sua própria sorte, o viajante seguia deitado esperando a chegada da morte. De repente se aproximou dali um grupo de peregrinos que andavam desesperados pelas notícias que a pouco tinham recebido.

O rei da cidade mais próxima foi sequestrado por um grupo de assassinos e não havia esperança de que ele estivesse vivo. Ao se chegarem perto do homem estendido sobre o sol escaldante, perceberam que ainda estava vivo e lhe cuidaram das feridas, antes, porém perceberam que o homem que estava ali jogado tinha tamanha semelhança com o seu rei que a surpresa de encontrá-lo os fez pular de alegria. Achamos o rei! Gritavam uns aos outros.

Depois de terem levado aquele homem ainda desacordado até a cidade onde deveria reinar, este deu um salto, e percebeu-se vestido de púrpura e com anéis reais nos dedos, estava coroado e com todos o servindo. Tal lhe foi a surpresa que apenas aguardou calado até entender o que havia acontecido. Ele tinha sido confundido com o verdadeiro rei. A confusão o fez meditar sobre o que deveria fazer. Aproveitar a boa sorte, ou assumir quem realmente era?

O dilema o seguiu de perto noite adentro. Assumir outra identidade era negar o seu ser, quem realmente era, seria então fretar com a maldade. Teria um povo que o reconheceria como outro totalmente diferente do que era. Se o deserto não o matara, a usurpação o faria.

Não assumir aquela posição significaria voltar a ser tudo o que era anteriormente. A verdade é que a vida nunca lhe favoreceu. Ele mesmo se considerava um azarado. Assumir-se era reconhecer seu fracasso, sua vida medíocre e abandonar uma grande oportunidade de desfrutar do poder pelo resto da vida.

Conforme passavam as horas, o dia clareava e o aviador não tinha uma resposta. O seu dilema entre a ética, o prazer e o poder o consumia...

Essa história é baseada em um dos textos de Pascal, embora com uma proposta de investigação diferente. Ousei exatamente repensar o sentido de ser o que somos, ou a negação disso, no paradigma da existência.

O primeiro dilema sobre o qual quero tratar é o da usurpação. A estranha ideia de tomar o lugar de outro é provavelmente o mais grave pecado que cometemos. Nietzsche faz referência ao dizer:

“todo espírito profundo precisa de uma máscara”.

A verdade é que a humanidade ao romper com a sua origem criou, a partir de si mesmo, uma nova imagem de homem totalmente diferente daquela original. Essa imagem é bem evidenciada na inveja. A inveja é um sentimento que gera no seu possuidor uma sensação se usurpação. O sentimento de querer ter o que é do outro. O mais interessante disso é que ninguém quer ser alguém inferior. Somos todos desejosos de parecer com um ser mais elevado. Levando esse encadeamento ao extremo, sabemos que é a falta do homem superior, revelado, que nos aflige.

O homem dentro da teologia é feito à imagem de Deus, mistério esse que só foi revelado com o nascimento do molde humano, a saber, o Cristo. Cristo é o motivo da nossa inveja. É a sua perfeição e a perseguição ao homem perfeito, que nos faz criar a sensação de que deveríamos tomar o seu lugar. Ao cobiçarmos o que é do outro, reafirmamos que não nos bastamos. É a nossa revolta contra o rei que nos causa isso.

O ser do Cristo é nosso ponto de busca, é nosso anseio, pelo simples fato de que Jesus e sua ética estão absolutamente ligados ao Deus criador.

“Meu alimento é fazer a vontade de Deus e CUMPRIR SUAS OBRAS”

Não existe dualidade na visão do Cristo, seu entendimento era o do pai e o entendimento do pai era o seu,

“eu e o Pai somos um”

Então a vida do nosso aviador e seu o dilema se confundem com a nossa. O padrão que se coloca à nossa frente é imensuravelmente majestoso, para que possamos assumi-lo, e se o fizéssemos seríamos infelizes. Pelo peso da realeza, e sua ética exigida, não poderíamos reinar se nos faltasse caráter. Assumir a vida de um ser elevado e perfeito em si mesmo nos geraria um trauma existencial profundo. A verdade é que exatamente desta forma, criamos isso. Optamos por assumir o lugar do rei, desfiguramos as suas atitudes e criamos o livre arbítrio, que é uma forma de dizer que o bem e o mal emanam de nós mesmos. Reinamos no lugar do filho de Deus, traímos a humanidade perfeita.

Nós fingimos porque não temos um rosto certo, este até hoje se encontra desfigurado. A ilusão de que temos dois seres vivendo em nós brota exatamente disso. O Ser criado, profundamente envolvido com a vida e seu projeto grande e imponente, reflete a ideia de que fomos criados pouco menores que os anjos. O ser externo é uma máscara, um engodo. É nele que fabricamos as mentiras, apequenamos o verdadeiro eu, e mutilamos o propósito da criação.

O segundo conflito do aviador diz respeito ao prazer ou poder, porque a sua vida não tinha nenhum sentido até ser posto na cadeira real. Em qualquer aspecto, ele sentia que ali era uma mudança de sorte, o destino tinha lhe proporcionado uma experiência totalmente nova, desfocada daquela que possuía até então, a do azar.

Esse conflito se põe exatamente na mesma égide do dilema da humanidade. Duas escolas famosas de psicologia lidam com a mesma moeda, apenas alterando o seu lado. A vontade de poder é no final das contas a vontade de prazer e vice-versa. Adler e Freud perseguiram os reais problemas humanos, no entanto se esqueceram de que o ser humano só busca esse prazer e esse poder como consolo pela sua vida de frustração. Poder e prazer são sintomas, não o objetivo. E só buscamos os tais pela nossa sensação de que a cadeira real nos pertence.

A semelhança do viajante com o rei é notória e essencial para desvendarmos essa outra face do dilema humano. Este conflito é gerado exatamente porque, como humanos, formos feitos parecidos com Jesus, com a possibilidade inclusive de agir eticamente em direção ao sagrado. Essa aspiração utópica, também se explica pelo trauma da origem o homem separado de seu ideal humano. Porque na vontade de reinar, existe um traço antigo de nosso caráter, que fazia com que toda criação se submetesse ao nosso domínio. A criação tinha um profundo respeito pelo Cristo em nós, pela aparência que tínhamos com o criador.

Éramos seus representantes. Criados para sermos embaixadores do céu na terra. O homem se sentia rei porque no final das contas, era. O espírito do viajante tremia só de pensar na possibilidade de se reestruturar ao momento antigo. Sua face mentirosa desejava usurpação, mas seu espírito a redenção. Autorização!

Nossa consciência sempre nos levará para a ideia de que fomos criados para reinar e, no final das contas, o reino nos pertence também. A similaridade do homem com o rei, não é pura coincidência, é o parentesco reafirmado que lhe indica. A verdade liberta o homem tanto da sua máscara, como lhe dá condições de aceitar o verdadeiro rei. Agora, o ser interior pode ser livre. Tudo que ele quer é:

“Meu alimento é fazer A VONTADE DE DEUS e cumprir Suas obras”

Quando estamos ligados à fonte da nossa vida, nos sentimos alimentados em nosso prazer e temos o poder real, não ilusório e dualista. Em Cristo, que é a imagem, se refaz o novo homem, livre da angustia de reinar no lugar de outro e de desejar o prazer em meio à vida sofrida. Em Cristo somos novas criaturas da realeza do Senhor, e coerdeiros das suas promessas.

Que nossa angustia nos leve para a origem do nosso problema! Que caiam nossas máscaras, para que Cristo reine! Que apareça nosso ser real (no sentido de rei) para que dominemos o mundo e submetamos todo ele à vontade de Deus!

Sobre o tempo, a fé e a eternidade!




A grande questão humana, a existência, passa pelo paradigma lógico do tempo. É a memória que gera a história, um estranho fenômeno que nos faz crer na existência, sem ela não teríamos esperança e não distinguiríamos o nosso lugar no mundo. Por isso não acreditamos que fomos feitos segundo atrás. A memória nos aproxima das pessoas, e ao mesmo tempo nos distingue destas. Quando lembramos, nos tornamos totalmente outro, em relação ao fato histórico, visto por tantos outros, ou seja, somos individualizados frente ao mesmo evento  e coletivizados igualmente nos tornando solidários em relação as vivências. O que quero então dizer com isto, é que a memória por conseguinte a história, nos compacta dentro de uma esfera que podemos chamar existência. Que a um tempo é intimamente pessoal, e no mesmo é coletiva.


Esse paradoxo nos leva a perceber duas formas de aplicação a esse efeito. Somos geralmente otimistas em relação à história universal. Isto se demonstrada na forma como tratamos os temas ligados à solidariedade coletiva. Aos vermos vítimas de tragédias, temos uma força que acredita completamente na salvação pela solidariedade. Nossa perspectiva é heroica quando falamos do passado. Perdoamos todas as nossas atrocidade, em nome dessa grande história.. Entretanto, quando diz respeito as histórias de vida na subjetividade, onde se encontra o desafio existencial, somos deveras trágicos. Contamos nossas histórias como verdadeiras sagas, que brotam da culpa que por sua vez vêm de um medo. Escolhemos os ídolos porque não temos coragem de sermos heróis.


Quem então firmou as colunas do tempo? Quem poderia propor que a volta da terra em torno do sol poderia ser um padrão de medição para os nossos próprios ciclos. Ou será que ciclicidade da história é um engodo que nos faz abandonar a dura realidade que avançamos linearmente. A ilusão nos leva a ano após anos fazer promessas e planos que se repetem infinitamente, como se o próximo ano pudesse nos salvar dos malfeitos do anterior. Inventamos o ciclo da história porque no fundo queríamos nos perdoar de tudo que não fizemos e daquilo que fizemos mal. A história cíclica só interessa aos culpados, aos imbecis e aos falsos heróis, os pescadores de ilusões.



A história é devidamente linear. Nela não são permitidas naturalmente saltos ao passado, não temos o direito de refazer nada. Devemos então conviver com a tristeza, ou seria agonia, de não pudermos dar um jeito naquilo de errado que praticamos. A história não se repete, para que a nossa responsabilidade não fosse adiada para depois.


Temos dois relatos que nos ilustram como se perceber nesse oceano da história, a saber, Abraão e Ulisses. Ambos se aventuraram em uma viajem perigosa, saíram de suas casas e enfrentaram dificuldade inimagináveis. O segundo rendeu-se a história cíclica, sua vontade era retornar ao ponto onde parou historicamente, e perseguir seu ideal de guerreiro. Ulisses viveu o “eterno retorno”. Já o primeiro ao sair de um lugar para outro deu um impulso à sua fé. Perdeu sua identidade étnica, rejeitou o seu destino proposto e sem remorsos partiu em direção à vida, sem saber para onde iria e nem aonde chegaria.


Aqueles que são movidos pela culpa, remorso, ou mesmo pelo seu trabalho se prendem à grande roda da existência, se tornaram cada vez mais enjaulados dentro de si, como gado serão levados e cumprirão apenas o destino natural. As plantas, animais e os elementos, fazem isso. Nada de extraordinário se apresenta sobre eles. A dinâmica culpa/medo os prenderá nas trevas da mesmice humana.



Abraão, o inconformado hebreu, não apenas cumpriu um ideal cíclico, onde por várias vezes se debruçou sobre seu passado tentando se ver perdoado. No entanto ele salta como ninguém jamais saltou. Abandona as convicções de tempo e pula sobre elas, ele nunca mais veria a Caldeia, como Moisés e os hebreus não veriam o Egito. A fé é um salto para dentro da história, é a limpeza da memória, da culpa da insensatez, é o aceitar do desafio da existência. 



Fé é a coragem de ser no tempo, enfrentando, e se abrindo para as possibilidades, sem medo ou culpa. O tempo cíclico ou anti-histórico de fato existe, mas não na ordem humana, pela nossa intenção esse tempo só nos causa dor. O tempo cíclico é a eternidade, o lugar onde a divindade habita e todos os ideais humanos são perfeitos.


A fé resolve a equação e nos ensina a vencer o medo. A fé é a conexão com aquele tempo fora da história, que produz a história , como diz Hegel:

“é a eternidade que faz com que o tempo desperte para a história”


É a eternidade que abre o tempo, é blasfêmia ou irreverência humana a tentativa de eternizar o seu tempo, se conformar, se cauterizar. Deixar para a amanhã a chamada para hoje, nada além do suspiro de uma alma cansada que perdeu a esperança e por consequência não tem nenhuma fé. Abraão sabia exatamente que sua vida estava aberta, como diz Sartre, para o nada. Seu salto para a verdadeira história provocou sua salvação!


Kierkegaard nos diz :

“O tempo intercepta constantemente a eternidade, em que a eternidade penetra constantemente no tempo”

A fé é a forma de ter certeza de um tempo sem culpa ou dor. A fé é a constante da qual deriva a ordem correta da vida. Fé é a forma que o sagrado elegeu para vislumbramos o seu reino, 



“Nós não entenderíamos a eternidade se não tivéssemos contato com ela”
(Plotino)


Temos em nós o código para a eternidade!



Signatum est super nos lumen vultus, tui, Domine!
 [A luz do Senhor está assinalada em nossas frontes (Sl 4.7)]

Jó, o crucificado



Jó inaugurou o debate sobre o sofrimento, e o fez a partir de sua própria história. As questões vivenciadas por esse personagem são resultados de debates até hoje, e a causa do sofrimento ainda parece ser particularmente associada à ideia da existência de Deus. Diversas literaturas tanto antigas como modernas apontam para a incompatibilidade de um Deus bom permitir o sofrimento.

A questão é que Jó inicia o pensamento pelo caminho oposto. Quem pergunta sobre o sofrimento é Deus, e o faz pelo caminho de atestar a verdadeira humanidade. Deus perguntaria: é o possível crer no homem se ele passar pelo sofrimento? A dúvida metódica e retórica de Deus imporiam ao homem a resposta de sua humanidade. Em outras palavras, ser humano é permanecer sofredor e, negar essa instância negaria portanto a própria humanidade.

O texto segue a lógica de Deus lendo a realidade do homem e percebendo com prazer a atitude de Jó em meio às perdas materiais e afetivas e todo o sofrimento que lhe causou, respondendo com uma humanidade profunda:

"O Senhor deu, e o Senhor o tirou"

A teologia de Jó estava portanto alinhada com a teologia divina. O sofrimento tem de ser respondido no viés da existência. Ter não é ser, e muito menos tem haver com a vontade humana, o ter é uma virtude concebida único e exclusivamente por Deus. Enquanto a modernidade declara aos seu ouvintes, “eu tenho, eu existo”. Jó diz: não tenho e continuo existindo!

O primeiro conflito estava resolvido, o homem pode dar conta de seu sofrimento e pode conviver com ele. Jó tinha respondido à retórica divina, tinha sido justificado pelo seu desapego! Até que outra pergunta de Deus começa a inflamar de novo. Agora o motivo era sensorial.



O sofrimento afeta os órgãos do sentido, aqueles responsáveis por colher as informações do mundo, que afetam a percepção, e por isso afetam a vontade. Novamente o humano Jó responde, dessa vez contraria o penso, logo existo. Aquilo que era aferido pelos sentidos e processados pelos pensamentos não poderiam dar contar do que é o sofrimento. A vida não é uma coleção de sensações reveladas, há uma dimensão humana que está acima de tudo isso. No espírito o ser humano dar conta de tudo que vai além do pensamento.

De novo vemos o alinhamento entre teologias. A dúvida didática de Deus é resolvida, a humanidade pode entender o sofrimento, pode tocá-lo e pode dar um sentido para ele. Pensar não é existir. Até mesmo porque o pensamento só nos diz do bem e do mal. A isto Jó diz:


“Receberemos de Deus o bem, e não o mal?”

O dualismo é vencido, a concepção de bem e mal devolvidas a Deus, e Jó permanece provando-se humano demasiadamente humano.

A história tem seu revés ao transferir o debate do conselho divino para o humano. Agora alguns amigos de Jó, pretendem manter a a resposta do sofrimento no patamar divino, e tentam o patriarca a se entregar à lógica desumana. Ao colocarem a responsabilidade (ação frente a) pelo mal em Deus e não à sua causa, caem no abismo destinado aos ignorantes do sofrimento humano.

Cada amigo de Jó parece conter em suas teológicas traços do que mais tarde seria bastante difundido no meio teológico moderno. Ideias como: Prosperidade versus sofrimento, Deus soberano versus sofrimento e pecado x sofrimento, formam a coxa de retalhos da ortodoxia e heterodoxia moderna.

Apenas um de seus amigos lhe apresenta e devolve ao debate a importância do lugar do sofrimento. Um de seus amigos diz que Deus não é responsável ( ação frente a) Sua responsabilidade está em prover a existência. Com isso entendemos que nossa compreensão da responsabilidade humana frente ao sofrimento nos possibilitará enxergar a responsabilidade divina frente a existência. 


A presença do redentor, figura emblemática de salvação. Nos leva a considerar que a encarnação de Deus reservaria resposta final ao sofrimento humano. Agora tudo faz sentido. Jó ao sentir as duras penas do sofrimento estava trazendo Cristo em suas feridas. Sofrer é perceber o Cristo crucificado em nós. Jó foi mais um crucificado, sentiu em suas pele os estigmas do abandono familiar, do circulo de amizades e de Deus. Foi o homem que primeiro imortalizou o sentido de todos os crucificados.

A crucificação da carne nos ensina a trilhar a resposta de Deus. A existência criada por Deus anseia por uma resposta urgente a respeito da vida humana. Jó entendeu o seu sofrimento em uma dimensão quase divina. Ele entendeu que ao sofrer poderia crer na resposta do sofrimento. A sua vida tinha sentido, logo seu sofrimento também.

Não tenho como não terminar esse texto sem mencionar a experiência de Paulo que é minha também.


“Já estou crucificado com Cristo; e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim”

Um sentido para o nascimento


Provavelmente todos passamos por uma história envolvente sobre as nossas origens. Há algo lúdico nos nascimentos. Por mais verdadeiros e autônomos que sejam, nos parecem soar como uma linda poesia. Ninguém pensa em seu próprio nascimento como uma experiência de dor agonizante que conduziu alguém a quase um processo de morte. Nem ao menos que o seu nascimento foi uma sucessão de eventos técnicos tal qual uma linha de montagem que lhe possibilitou estar ali.

É bem possível que nos lembremos desse momento com o peito cheio de paixão, com a respiração ofegante de quem está pronto a nascer de novo a qualquer hora. Isto acontece porque o fenômeno do parto é incorporado a uma série de outros que serão posteriormente chamados de vida.

Verdade também que uma das história mais antigas que contam a nossa própria história, traz o mesmo elemento lúdico. Uma poesia nos conta que no principio, nós seres humanos fomos resultado de um parto profundo realizado pelo universo. Seu autor humano, tinha acabado de escrever um salmo de exaltação, outra poesia, e nesta tinha pedido estranhamente para que fosse ensinado a contar os seu dias de uma forma tal que o seu coração se tornasse sábio, a exemplo de quem idealizou o seu parto.

O resultado não foi diferente, a poética história da humanidade nasceria da verdade simples de alguém que se preocupou com a sua existência. Elaboração criativa que demonstrava que em sete dias pode conter todo o necessário para a vida. Viver uma semana, dia por dia sem a preocupação do próximo é sem dúvida a maior virtude que um homem pode alcançar.

Este salmista pouco conhecido, um patriarca, Moisés.  Tinha aprendido a contar os seus dias e os dias de toda a humanidade. Tinha aprendido a perceber o tempo passando. Aprendeu que os dias visavam apenas um fim, sua própria vida.

Não existe um só motivo que justifique a vida sem dias. Há de fato alguns que passarão a vida toda e não terão vivido nem apenas uma semana. Não terão tempo para ver o essencial. Não verão a luz surgindo nas auroras, não há de se ver o sol surgindo, a lua. Não terá tempo nem ao menos para perceber as águas que se distanciam da terra de forma infinita, nem muito menos que nenhum desses espaços permanece sem vida, sem animais para contar a história acontecendo.

Provavelmente alguns ficarão sem a possibilidade de verem a si mesmos. Não verão a estrutura frágil em que foram moldados, nem a estrutura forte que os deu vida. Não viverão, eles não merecem viver, ou na verdade não querem viver.

A grande verdade é que no texto sobre o começo de tudo, um mestre singular nos ensinou que o maior deveria servir o menor. Independente da ordem em que se exponham os detalhes da origem, sabemos que tudo foi criado do mais forte para o mais fraco. O homem foi o ser criado por último para ser servido por todos. Encontramos uma criatura tão frágil e débil que sem o empenho de todos os outros fortes, estaria fadada ao fracasso. A ordem era clara o maior sirva o menor. E assim tudo era muito bom.

Contundo, ao homem foi lhe dado um poder sobrenatural, ele portaria a personalidade do maior, que criou tudo. Em outras palavras, em seu corpo devia ser servido e, em seu espírito deveria servir a todos. A ordem estava perfeita, com o espírito livre ele tinha domínio sobre todos e só por esta razão não poderia se considerar superior. A sua única regra era a mesma antiga, sirva ao menor!

Dessa forma todos os outros seres passariam a carecer de espírito. Tudo que está em volta do ser humano clama por uma espiritualização por um sentido. Somos responsáveis por dar alma, cor, textura, transcendência aos seres que nos mantêm o corpo. O maior servindo ao menor.

Como humanos somos criados com espíritos livres, e liberdade implica em serviço. O que alguém já chamou de responsabilidade. O mundo espera ansiosamente por humanos livres que aprenderam a contar os seus dias observando a criação, que voltaram a ver os lírios ou os pássaros. O mundo precisa voltar a lembrar-se de seu parto, voltar a sonhar com ele e viver a partir dele.