A grande questão humana, a existência, passa pelo paradigma lógico do tempo. É a memória que gera a história, um estranho fenômeno que nos faz crer na existência, sem ela não teríamos esperança e não distinguiríamos o nosso lugar no mundo. Por isso não acreditamos que fomos feitos segundo atrás. A memória nos aproxima das pessoas, e ao mesmo tempo nos distingue destas. Quando lembramos, nos tornamos totalmente outro, em relação ao fato histórico, visto por tantos outros, ou seja, somos individualizados frente ao mesmo evento e coletivizados igualmente nos tornando solidários em relação as vivências. O que quero então dizer com isto, é que a memória por conseguinte a história, nos compacta dentro de uma esfera que podemos chamar existência. Que a um tempo é intimamente pessoal, e no mesmo é coletiva.
Esse paradoxo nos leva a perceber duas formas de aplicação a esse efeito. Somos geralmente otimistas em relação à história universal. Isto se demonstrada na forma como tratamos os temas ligados à solidariedade coletiva. Aos vermos vítimas de tragédias, temos uma força que acredita completamente na salvação pela solidariedade. Nossa perspectiva é heroica quando falamos do passado. Perdoamos todas as nossas atrocidade, em nome dessa grande história.. Entretanto, quando diz respeito as histórias de vida na subjetividade, onde se encontra o desafio existencial, somos deveras trágicos. Contamos nossas histórias como verdadeiras sagas, que brotam da culpa que por sua vez vêm de um medo. Escolhemos os ídolos porque não temos coragem de sermos heróis.
Quem então firmou as colunas do tempo? Quem poderia propor que a volta da terra em torno do sol poderia ser um padrão de medição para os nossos próprios ciclos. Ou será que ciclicidade da história é um engodo que nos faz abandonar a dura realidade que avançamos linearmente. A ilusão nos leva a ano após anos fazer promessas e planos que se repetem infinitamente, como se o próximo ano pudesse nos salvar dos malfeitos do anterior. Inventamos o ciclo da história porque no fundo queríamos nos perdoar de tudo que não fizemos e daquilo que fizemos mal. A história cíclica só interessa aos culpados, aos imbecis e aos falsos heróis, os pescadores de ilusões.
A história é devidamente linear. Nela não são permitidas naturalmente saltos ao passado, não temos o direito de refazer nada. Devemos então conviver com a tristeza, ou seria agonia, de não pudermos dar um jeito naquilo de errado que praticamos. A história não se repete, para que a nossa responsabilidade não fosse adiada para depois.
Temos dois relatos que nos ilustram como se perceber nesse oceano da história, a saber, Abraão e Ulisses. Ambos se aventuraram em uma viajem perigosa, saíram de suas casas e enfrentaram dificuldade inimagináveis. O segundo rendeu-se a história cíclica, sua vontade era retornar ao ponto onde parou historicamente, e perseguir seu ideal de guerreiro. Ulisses viveu o “eterno retorno”. Já o primeiro ao sair de um lugar para outro deu um impulso à sua fé. Perdeu sua identidade étnica, rejeitou o seu destino proposto e sem remorsos partiu em direção à vida, sem saber para onde iria e nem aonde chegaria.
Aqueles que são movidos pela culpa, remorso, ou mesmo pelo seu trabalho se prendem à grande roda da existência, se tornaram cada vez mais enjaulados dentro de si, como gado serão levados e cumprirão apenas o destino natural. As plantas, animais e os elementos, fazem isso. Nada de extraordinário se apresenta sobre eles. A dinâmica culpa/medo os prenderá nas trevas da mesmice humana.
Abraão, o inconformado hebreu, não apenas cumpriu um ideal cíclico, onde por várias vezes se debruçou sobre seu passado tentando se ver perdoado. No entanto ele salta como ninguém jamais saltou. Abandona as convicções de tempo e pula sobre elas, ele nunca mais veria a Caldeia, como Moisés e os hebreus não veriam o Egito. A fé é um salto para dentro da história, é a limpeza da memória, da culpa da insensatez, é o aceitar do desafio da existência.
Fé é a coragem de ser no tempo, enfrentando, e se abrindo para as possibilidades, sem medo ou culpa. O tempo cíclico ou anti-histórico de fato existe, mas não na ordem humana, pela nossa intenção esse tempo só nos causa dor. O tempo cíclico é a eternidade, o lugar onde a divindade habita e todos os ideais humanos são perfeitos.
A fé resolve a equação e nos ensina a vencer o medo. A fé é a conexão com aquele tempo fora da história, que produz a história , como diz Hegel:
“é a eternidade que faz com que o tempo desperte para a história”
É a eternidade que abre o tempo, é blasfêmia ou irreverência humana a tentativa de eternizar o seu tempo, se conformar, se cauterizar. Deixar para a amanhã a chamada para hoje, nada além do suspiro de uma alma cansada que perdeu a esperança e por consequência não tem nenhuma fé. Abraão sabia exatamente que sua vida estava aberta, como diz Sartre, para o nada. Seu salto para a verdadeira história provocou sua salvação!
Kierkegaard nos diz :
“O tempo intercepta constantemente a eternidade, em que a eternidade penetra constantemente no tempo”
A fé é a forma de ter certeza de um tempo sem culpa ou dor. A fé é a constante da qual deriva a ordem correta da vida. Fé é a forma que o sagrado elegeu para vislumbramos o seu reino,
“Nós não entenderíamos a eternidade se não tivéssemos contato com ela”
(Plotino)
Temos em nós o código para a eternidade!
Signatum est super nos lumen vultus, tui, Domine!
[A luz do Senhor está assinalada em nossas frontes (Sl 4.7)]